Protesto em 2016

(Por Guido Orgis)

 Foi durante a malfadada negociação do ajuste fiscal do então ministro da Fazenda Joaquim Levy, em 2015, que o governo Dilma Rousseff conseguiu fazer o contrário do que o Brasil precisava: a antirreforma da Previdência.

Com o Congresso virado contra a presidente, o governo tentou apertar as regras para a concessão de pensões por morte e no fim teve de negociar a criação da regra 85/95 para a concessão de aposentadorias. Um estudo publicado agora pelo Ipea mostra que a inépcia política de Dilma beneficiou trabalhadores de renda mais alta e vai custar bilhões que serão pagos por décadas pelo contribuinte.

Em 2015, tanto o governo quanto especialistas em Previdência venderam a versão errada sobre a regra 85/95. Todos reconheciam que ela enfraquecia o fator previdenciário (que calcula o benefício por tempo de contribuição de acordo com a sobrevida média dos aposentados), mas que só teria efeito negativo nas contas públicas no longo prazo. O governo até ficou feliz de acrescentar um aumento gradual na conta para a concessão do benefício, que chegará aos 90/100 em 2027. Mas havia um erro no argumento, agora provado pelo Ipea: muita gente que estava esperando para se aposentar anteciparia a saída do mercado de trabalho porque a regra é melhor do que o fator previdenciário.

A regra 85/95 estabelece que o trabalhador tem direito à aposentadoria integral quando sua idade e seu tempo de contribuição somados atingirem 85, no caso de mulheres, e 95 para homens. Essa somatória vai subir gradativamente a partir de janeiro de 2019, quando passa a ser 86/96. Assim, uma mulher de 53 anos com 32 de contribuição tem direito à aposentadoria integral. Um homem de 57 e 38 de contribuição também.

O argumento no Congresso era o de que o fator previdenciário penalizava demais o trabalhador, que tinha de esperar cada vez mais para conseguir uma aposentadoria integral – a fórmula do fator leva em conta a esperança de vida da pessoa no momento da aposentadoria e o tempo que ela contribuiu. Na prática, é um redutor que tem como objetivo manter a sustentabilidade atuarial da Previdência, pois não leva só em conta o tempo de contribuição no cálculo do benefício, mas também o tempo em que as aposentadorias serão pagas no futuro.

Os pesquisadores do Ipea Rogerio Nagamine Costanzi, Alexandre Zioli Fernandes e Graziela Ansiliero fizeram um estudo extenso sobre a regra 85/95 e chegaram à conclusão de que ela rapidamente elevou a despesa previdenciária e que esse custo se refletirá nas contas públicas durante décadas. Eles analisaram 25 meses de concessões de aposentadorias entre meados de 2015 e meados de 2017 e já notaram um aumento extra de R$ 2 bilhões na despesa da Previdência nesse período. Calculando o efeito futuro dessas aposentadorias, eles chegaram a uma cifra assombrosa: até 2060, esses benefícios concedidos em 25 meses custarão entre R$ 50 bilhões e R$ 54 bilhões a mais para o sistema previdenciário. Como a regra continua valendo, a conta aumentará no ritmo das concessões feitas pela Previdência até que caminhe alguma reforma na área.


Nesses 25 meses que serviram de amostra para os pesquisadores, foram concedidas 787 mil aposentadorias por tempo de contribuição. Dessas, 306 mil foram pela regra 85/95 (38,9% do total). Esses benefícios são maiores do que os concedidos com a incidência do fator previdenciário. No primeiro semestre de 2017, as concessões pelo fator tiveram benefício médio de R$ 1.942, enquanto a regra 85/95 garantiu um rendimento médio de R$ 2.818.


Via de regra, as aposentadorias por tempo de contribuição beneficiam trabalhadores com rendimento mais alto e maior escolaridade. Eles têm carreiras mais estáveis e, por isso, conseguem contribuir por mais anos, sem precisar esperar a idade mínima de 60 anos para mulheres e 65 anos para homens. Ou seja, a regra 85/95 mirou os trabalhadores mais bem pagos e lhes garantiu aposentadorias quase 50% maiores do que teriam com a incidência do fator previdenciário.


Os autores notam que a regra 85/95 garante um benefício muito mais alto com uma exigência muito baixa de contribuição. Eles usam como exemplo uma mulher de 53 anos e 30 de contribuição. Ela poderia se aposentar pelo fator previdenciário com uma taxa de reposição de 0,642 (ou seja, um desconto de 35,8% no benefício estimando-se uma sobrevida de 29,7 anos). Mas se esperar um ano, ela poderá se aposentar pela regra 85/95, que na prática elava o fator para um. Há, em um ano, um aumento de mais de 55% na remuneração. Para um homem de 55 anos e 35 de contribuição, o fator seria 0,692. Se ele postergar a aposentadoria em dois anos e meio, ele terá o benefício integral pela regra 85/95, com um aumento de 44,5% na remuneração.


É por causa dessa lógica que se esperava uma postergação em aposentadorias nos primeiros anos da vigência da regra. Mas havia um contingente de pessoas que, influenciadas pelo fator previdenciário, continuavam no mercado de trabalho por mais tempo. Elas agora estão se aposentando pelo novo sistema. É por isso que, nos primeiros 25 meses de vigência do modelo, a idade média dos beneficiários é um pouco mais elevada do que a daqueles que optam pelo fator previdenciário. No ano passado, a idade média de concessão pelo fator foi de 53,7 anos, contra 57,5 pela regra 85/95.

Com o tempo, os pesquisadores esperam que a regra 85/95 leve a uma redução na idade média de concessão de aposentadorias e a uma limitação ainda maior no tempo de contribuição, já que passará a pegar também trabalhadores mais jovens que decidiram esperar alguns meses para obter um benefício expressivamente maior. “O fator previdenciário original ainda permitia aposentadorias precoces, mas com menor risco atuarial graças a seu efeito redutor sobre o valor dos benefícios, que diminuía a taxa de reposição das aposentadorias por tempo de contribuição. Este mérito foi virtualmente eliminado pela regra 85/95”, escrevem os autores.


A conclusão dos pesquisadores é uma dura crítica à regra 85/95, que estaria descumprindo princípios constitucionais ao instituir um benefício especial que não é direcionado às pessoas de renda mais baixa, como determina a Constituição. Além disso, a lei que instituiu esse sistema atuou na direção contrária à sustentabilidade financeira e atuarial da Previdência, outro preceito da Carta Magna.


Em um momento em que o debate da reforma da Previdência saiu do radar dos políticos em Brasília, o estudo do Ipea prova que a situação das contas previdenciárias não pioraram só por uma combinação de envelhecimento da população e mercado de trabalho deprimido. Houve também uma escolha deliberada do Congresso em criar um benefício mais elevado e com exigências menores do que o já existente – e também imperfeito – fator previdenciário (que, se não conseguiu aumentar a idade de aposentadoria, pelo menos reduziu os benefícios para quem escolhe se aposentar cedo).

Agora, há o lado positivo. O governo não precisa mudar a Constituição para acabar com a regra 85/95. Basta uma medida provisória (que precisa, claro ser votada pelo Congresso). Seria um bom primeiro passo para uma reforma mais ampla. (Fonte: Gazeta do Povo)

 

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