OSupremo Tribunal Federal (STF) será palco nesta segunda-feira (26) de mais umabatalha entre os defensores do direito à saúde como garantido na ConstituiçãoFederal e aqueles que entendem que a saúde pode ser comercializada. Emaudiência pública, os ministros do STF participarão do debate sobre um recursoapresentado pelo Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul.A instituição pede o estabelecimento de critério para internação hospitalarpelo sistema público, baseado na capacidade de pagamento por serviços de saúde.
Emprimeira instância, a Justiça decidiu desfavoravelmente ao pleito do Conselho,que movera ação civil pública contra o município gaúcho de Canela, exigindo queadotasse o critério da “diferença de classe” para a internação hospitalar nomunicípio, com a finalidade de melhorar o tipo de acomodação do paciente epossibilidade de contratação de profissional de sua preferência mediantepagamento.
Duasquestões são importantes na discussão da proposta de Internação Hospitalar com'Diferença de Classe’ no Sistema Único de Saúde: a primeira é saber se a saúdeé um bem negociável. A segunda é entender como essa iniciativa concorre para oaprofundamento das desigualdades sociais no padrão de assistência à saúde nopaís.
Paraclarear as discussões, vamos recorrer a dois documentos referência no campomédico e sanitário: a Constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS),firmada em 12 de julho de 1946; e a Constituição Brasileira de 1988.
Segundoas duas, inspiradas pelos mesmos ideais, a saúde deve ser considerada umdireito fundamental do homem, com a mesma posição de igualdade em relação aodireito à vida e a liberdade.
Oprocesso de melhora do estado de saúde constitui um direito fundamental dequalquer ser humano, sem distinção de raça, religião, opinião política e decondição econômica e social. Segundo esse principio, em nenhum caso osdeterminantes econômicos podem limitar o direito fundamental da pessoa. Porisso, a assistência à saúde deve ser sempre um instrumento de concretização dodireito ao acesso.
Mais igualdade
NoBrasil, o restabelecimento do Estado democrático de direito, com o fim daditadura civil- militar, não se encerra com a retomada das eleições livres enormalização da política partidária. Desde 1984, a sociedade luta pelasolidificação e qualificação da democracia.
Paraisso, criou uma série de normas e legislações que garanta o pleno acesso aosdireitos humanos e concretizá-los como políticas públicas no Brasil,conformando um Estado Social.
OEstado Social se propõe a diminuir os impactos do mercado na criação voraz dedesigualdades, o que somente a política e a criação de estruturas voltadas parao interesse coletivo podem fazer.
Porisso, o Estado Social olha o futuro, visando diminuir diferenças de partida(desde o nascimento), assegurando maiores chances para aqueles não portadoresde ativos (na forma de renda, propriedades, capital social).
Inspiradonesse ideais, o movimento da reforma sanitária das décadas de 1970 e 1980conquistou, junto aos constituintes, a criação do SUS, conforme o artigo 196 daConstituição de 1988:
"Asaúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticassociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravose ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção,proteção e recuperação".
Aforça e coragem expostas nesse parágrafo devem ser compreendidas como um gritoda sociedade brasileira por mais cidadania. Foi e é um claro posicionamento dopovo brasileiro em relação ao passado e, principalmente, ao futuro que sedeseja. É, claramente, uma defesa política do acesso à saúde e ao bem estarcomo direito fundamental.
Em1988, o desejo da sociedade foi escrito para nos fazer lembrar da relação entredemocracia, direitos sociais universais e cidadania. Não foram deixadas dúvidassobre o legítimo clamor por igualdade e justiça, que supera as clivagens declasse ou status. O anseio por um Estado que garanta políticas de bem-estarpara todos é inquestionável.
Aescolha foi pela construção de um país que ofereça um conjunto ilimitado deserviços para a a população. Em lugar de mínimos sociais, cabe ao Estadoassegurar proteção ao longo de toda a vida. Logo, não se aceita reduzirdireitos a “pacotes”. O Brasil quer cidadania plena.
Porém,a trajetória política do país se distanciou dessas insígnias, quando uma novaordem conservadora quis reverter todas as conquistas do período de diminuiçãodas desigualdades e de alargamento dos direitos sociais no mundo.
Adesmercantilização do acesso (via SUS pela gratuidade ou via planos pelaisenção fiscal ilimitada) convive hoje com acelerada mercantilização da ofertae com  estímulo crescente à capitalizaçãoe formação de grandes conglomerados oligopolistas que englobam serviços,finanças e indústria, via crédito subsidiado e outras políticas de fomento.
Essacoexistência têm efeitos negativos do ponto de vista da eficiência do sistemade saúde e da equidade, visto que perpetua as desigualdades no acesso,utilização e qualidade dos serviços entre as pessoas segundo a capacidade depagamento e de usufruto da atenção disponível nos distintos segmentos.
Tende,ainda, a colocar os serviços públicos como complementar aos privados, nos casosde “clientes” que não interessam ao mercado (idosos, pessoas com doençascrônicas ou que requerem tratamentos de alto custo).
Portudo isso, em 2014, a sociedade brasileira se une, representada por diferentesmovimentos sociais, entidades ligadas à reforma sanitária, trabalhadores,estudantes, professores e pesquisadores da área da saúde. Todos contra qualquertipo de distinção na atenção à saúde. Afinal, saúde não pode ser mercadoria.
Aose estabelecer uma diferenciação no acesso a bens e serviços de saúde sãoferidos os princípios de universalidade e igualdade assegurados pelaConstituição, que renuncia a garantir benefícios específicos a cidadãos dediferentes classes sociais.
Avançarnesse sentido, além de inconstitucional, é promover o retorno ao passadoautoritário, desigual na essência e contra as políticas pró-cidadania que têmgarantido conquistas importantes para a sociedade brasileira nas últimasdécadas.
Aindacom o objetivo de qualificar nossa democracia é hora de assegurar todos osdireitos universais, sem discriminação e diferenciação de classe para queconsigamos evoluir a um padrão civilizatório digno dos melhores países do mundodesenvolvido.
Novo olhar
Nãoé mais possível reduzir saúde a questões pontuais, como infraestrutura,tecnologia ou contratação de profissionais. É fundamental refinar o olhar eperceber que saúde dialoga com acesso a moradia, saneamento, transporte,alimentação de qualidade e educação.
Nãoé mais possível fechar os olhos às relações entre meio ambiente e qualidade devida.
Porisso, é ingênuo pensar que soluções para melhoria de serviços e gestão em saúdeperpassam a adoção de práticas privadas em ambientes públicos. Cada vez mais,as discussões sobre direitos, democracia e desenvolvimento são transversais eintegradas. O olhar setorial já não é considerado alternativa aos desafiosatuais das áreas sociais.
Asociedade brasileira, cotidianamente, enfrenta questões que não nos permitemesquecer  nossa história de exclusão,desigualdadee injustiça. Vivemos um exercício diário e árduo de construção de umaverdadeira democracia, em detrimento da falta de oportunidades e direitos, eresíduos de um período em que brasileiros mais pobres e desprotegidos eramapenas seres à espera da cidadania. Não precisamos de mais diferenciação. Nossasociedade necessita de mais igualdade.
AnaLuiza D'Àvila Viana é professora do Departamento de MedicinaPreventiva/Faculdade de Medicina (USP) e membro da rede Plataforma PolíticaSocial.
DaviCarvalho é jornalista, especializado em economia e política social, membro darede Plataforma Política Social.

Fonte:Rede Brasil Atual
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