Aretomada das greves no Brasil não é algo recente. Na pesquisa qualificada quefaz há muitas décadas, o Dieese nos mostra que desde 2003 elas vêm se ampliandosistematicamente. Começou com 340 naquele ano e chegou a 873 paralisações em2012, um salto bastante expressivo.
Suasreivindicações foram: no setor industrial, 42,7% objetivavam maior participaçãonos lucros e resultados, essa pragmática empresarial que obriga ostrabalhadores a aumentar seus salários somente quando produzem mais. Foramseguidas por melhor alimentação (37,6%) e reajuste salarial (29,7), entreoutras. Nos serviços, a alimentação puxou 43,1% das greves; os reajustessalariais contabilizaram 40,7%, e o pagamento de atrasos salariais totalizou34,1%.
E,se em 2013 tudo indica que esses números avançaram ainda mais, neste ano, atomar pelo que estamos vivenciando, haverá um crescimento exponencial dasparalisações. Para bem compreender essa explosão recente, temos que olhar comatenção para o Brasil desde junho de 2013.
Deum modo breve, desde aqueles levantes de junho que o País mudou de qualidade.Ocorreu algo excepcional em nossa história, dado pela intersecção entre trêsmovimentos que caminhavam em paralelo e se entrecruzaram, produzindo um choquesocial e político profundo. Primeiro, desde 2008 as lutas globais vêm seampliando em todas as partes do mundo. No Oriente Médio, na Ásia, na Europa,até atingir o coração do Império, os EUA, para ficar nesses exemplos. E essaonda foi vista por todos os brasileiros. Sua lição basilar: para se conquistaralgo é preciso tomar as praças públicas, pois os organismos de representação(com os Parlamentos à frente) estão completamente na berlinda.
Segundo,esse movimento mais global encontrou uma situação especial no Brasil: o governodo PT comemorava dez anos de um “novo ciclo” quando as rebeliões de junho de2013 roubaram o bolo de Lula e esparramaram seus farelos pelas praças de todo oPaís. Ruiu o mito da “nova classe média”, em plena festa do seu primeirodecênio. Os assalariados que encontram empregos recebem, em sua grande maioria,até um salário mínimo e meio; trabalham para estudar e estudam para melhorar notrabalho. O canudo da faculdade privada lhes faz derrapar ainda mais nosempregos voláteis. Pagam essas faculdades e encontram empregos com altas taxasde rotatividade, ainda mais terceirizados, mais adoecidos, mais precarizados,sofrendo assédio moral, etc. Em suma: muito mais privação do que realização. E,para trabalhar, dependem do transporte público, quase todo privatizado edegradado; se adoecem, oscilam entre a tragédia dos hospitais públicos e osengodos dos convênios privados. Uma hora a situação iria fazer água, e issoocorreu em junho do ano passado. (Aqui vale um parênteses: o mito tucano, essenão ruiu porque simplesmente nunca existiu, uma vez que seu projeto émajoritariamente sustentado pelo voto conservador que não se assusta com oaumento da segregação social no País.)
Oterceiro foi um espetacular elemento contingente. A celebração tríplice das Copas(das Confederações, da Fifa e das Olimpíadas), imaginada por Lula e pelosgrandes capitais como coroamento de um ciclo virtuoso, fez desabrochar seuexato inverso e o descontentamento explodiu.
Assim,junho de 2013 se adensou com os trabalhadores-estudantes urbanos lutando pelopasse livre e contra a degradação da vida nas cidades, elevando a um patamarsuperior o levante das periferias, fortalecido com o MTST e sua emblemáticaocupação da Copa do Povo. E esse descontentamento se generalizou.
Jáas greves e manifestações deste maio e junho de 2014 consolidam a rebeldia dotrabalho, dos homens e mulheres que se desgastam na indústria, nos transportes,no funcionalismo público (hospitais, previdência, escolas e universidadespúblicas), em uma onda de paralisações que atinge muitos milhares detrabalhadores e trabalhadoras. (Os docentes e funcionários das universidadespúblicas paulistas, em exemplo que deve ser único neste período, receberam aacintosa proposta de reajuste zero, a pretexto de que a gestão anterior da USP,cujo ex-reitor foi escolhido pelo governador do PSDB desconsiderando a vontadeda maioria de comunidade acadêmica, foi pautada pelo descalabro. A ondeprivatista exacerbou-se. Mas vale olhar para a explosão da crise universitáriado Chile, depois de décadas de privatismo desde a ditadura de Pinochet, quegerou uma explosão social intensa nos últimos anos.)
Umarápida fenomenologia das greves pode recordar a emblemática paralisação dosgaris, durante o carnaval do Rio. Contra uma direção sindical atrelada ecupulista, os garis perceberam que na festa carioca a limpeza não rimava com afalta de presteza da prefeitura em relação a seu exaustivo labor diário.Seguiram-se outras tantas greves, como a dos motoristas e cobradores do Rio,São Paulo, em São Luís, entre incontáveis cidades onde houve paralisação nosistema de transportes, um dos motes centrais, vale lembrar, dos levantes doano passado. Ora contra as direções sindicais, ora com o seu apoio, as grevesencontram seu principal elemento causal na precariedade das condições detrabalho e salário.
Masa coisa esquentou mesmo com a greve dos metroviários em São Paulo. A grita foigeral e a imprensa, quase sempre uníssona, bradou contra mais essa paralisação,que foi deflagrada por milhares de trabalhadores cujo piso salarial era poucomais de R$ 1.300. Valor, como se sabe, insuficiente para viver em uma cidadecom alto custo de vida e ainda com inflação em crescimento.
Depoisde alguns dias de paralisação, foram duramente reprimidos pelo governo Alckmin,com ação policial, demissões e acusação de “vandalismo” (os mesmostrabalhadores que, com zelo e cuidado, conduzem os metrôs diariamente) eameaçados com mais 300 demissões se a greve voltar. Paralela e curiosamente, astransnacionais Alston, Siemens, entre outras, bem como seus gendarmes quepraticaram fraudes volumosos em obras de ampliação do Metrô, sob governos doPSDB, como a imprensa e Justiça têm divulgado intensamente, ainda não sofreramnenhuma punição exemplar. E vale também recordar que os metroviários seutilizam de um direito constitucional (o direito de greve) que foi obtidodepois de décadas de luta contra a ditadura militar.
Porfim, um argumento recorrente contra as greves, é de que elas são “oportunistas”por ocorrerem às vésperas da Copa. Mas a Fifa, essa transnacional do(des)entretenimento global não está impondo sua marca e seus “parceiros” paralucrar ainda mais compulsivamente com sua Copa? Não obrigou o País a mudar sualegislação para poder vender bebidas alcoólicas nos estádios e assim ganharainda mais? Não é que até o acarajé ela tentou extirpar do estádio (ou arena?)em Salvador? E o empresariado do ramo de hotelaria não está cobrando o quequer, assim como os restaurantes?
Vementão a pergunta que não quer calar: por que somente os trabalhadores são“vândalos” e proibidos de lutar por seus direitos neste momento em que o mundointeiro está olhando para o Brasil?
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RicardoAntunes é professor titular de Sociologia do Trabalho no IFCH/Unicamp e autor,entre outros, de 'Os sentidos do trabalho' e 'Riqueza e miséria do trabalho noBrasil', vols. I e II (ambos pela Boitempo)