A Medida Provisória 881, de 30 de abril de 2019, intitulada “MP da Liberdade Econômica”, é festejada pela mídia e seus associados como uma bem-vinda mudança liberal na legislação econômica brasileira.

Como veremos, no entanto, esse instrumento não é liberal ou neoliberal, vai além: é anarcocapitalista.


Ele traz desordem, a imposição da lei do mais forte, a dominação econômica brutal. Consiste em uma ruptura com a tradição jurídica brasileira, pois não pretende regular ou organizar o sistema econômico, mas criar uma nova (des)ordem capitalista extremada. A “MP da Liberdade Econômica” é, antes de mais nada, uma norma antissocial, uma verdadeira “MP da Libertinagem Econômica”.


A redação da Medida Provisória é péssima, confusa, padece de atecnia. Talvez seja proposital, em benefício de seus idealizadores. Sua proposta é bizarra: baixa-se uma suposta “declaração de direitos” sem qualquer participação ou reivindicação popular. Essa medida, que poderia ser apenas inócua ou inútil.


A livre-iniciativa é garantida constitucionalmente como fundamento da República (artigo 1º, IV) e da ordem econômica constitucional (artigo 170, caput). Não há nenhuma necessidade de outra norma para protegê-la ou assegurá-la. Ao invés, agravará o desmonte da sociedade, seguindo os passos da malfadada reforma trabalhista de 2016, que desorganizou o ambiente de trabalho no Brasil e gerou milhões de desempregados ou subempregados.


A exposição de motivos da medida consiste em um verdadeiro conjunto de aberrações jurídicas e econômicas. Lá está escrito que “(…) Para o Brasil caminhar nesse sentido [de se aproximar da atratividade de regimes empresariais como o do Estado de Delaware, nos EUA, notório paraíso fiscal], propõe-se de maneira emergencial permitir que qualquer cláusula contratual seja vigente entre os sócios privados e capazes que assim a definiram, inclusive aquelas que, atualmente, parecem ir em sentido contrário a normas de ordem pública, estritamente, do direito empresarial, contanto que não tenham efeitos sobre o Estado ou terceiros alheios à avença”.


Postulam, assim, a prevalência ilimitada no ordenamento jurídico de “qualquer cláusula” pactuada pelas partes. Esta amplíssima admissibilidade alcançará “inclusive aquelas que, atualmente, parecem ir em sentido contrário a normas de ordem pública”. Pretende-se, desta forma, por uma norma, criar um espaço e um lapso temporal em que não vigora o próprio direito.

 

A “MP da Libertinagem Econômica” é um manifesto ideológico que se pretende superior à própria Constituição


A MP prevê que não vale o ordenamento jurídico se as partes do contrato empresarial assim o desejarem. Não é preciso ser especialista no assunto para se compreender o absurdo de tal proposição. Essa autorregulação ao extremo, em que se praticamente proíbe a revisão contratual, é a instituição de um sistema de autocomposição pela força, onde prevalecerá sempre o poder econômico, ainda mais em uma sociedade desestruturada como a brasileira.


O objetivo é “liberar o empreendedor do jugo do Estado” e o exemplo utilizado pelo governo é o de facilitar a atividade da costureira ou do vendedor de rua, mas está, na realidade, atendendo aos interesses de pouquíssimos. Por exemplo, a norma prevê a proteção do patrimônio dos devedores, a redução das informações do eSocial, legitimando fraudes. Ela praticamente inviabiliza a desconsideração da personalidade jurídica, que só será possível caso se comprove dolo. Dentre outras “inovações”, ela volta a defender a ficção da “simetria de informações”, como no século XIX.


O relator da Câmara dos Deputados ampliou consideravelmente o escopo original da MP, incluindo regras sobre direito trabalhista, direito do consumidor e muitas outras matérias. O texto passou de 18 para 53 artigos, seguindo a prática corrente e muito discutível do processo legislativo brasileiro: a inclusão dos chamados “jabutis”, ou seja, emendas parlamentares que modificam projetos de lei em discussão provenientes de lugar incerto e não sabido. Da mesma forma que o verdadeiro jabuti não sobe em árvore, uma emenda não surge do nada. Alguém a colocou ali, visando atender a interesses nem sempre transparentes.


A “MP da Libertinagem Econômica” é um manifesto ideológico que se pretende superior à própria Constituição. Ela defende uma “única interpretação possível” da atuação econômica do Estado, como se o seu texto houvesse instituído uma economia de mercado “pura”. Há, aqui, a pretensão de tentar obrigar a adoção pelo Poder Judiciário dessa única interpretação, consistindo em uma forma de imposição de determinada visão ideológica sobre todas as demais. O Brasil, assim, oferece mais uma jabuticaba ao mundo: a Constituição deve ser interpretada conforme determina a lei.


Qual o modelo de sociedade que a medida projeta para o futuro? Uma sociedade de 200 milhões de costureiras (de ajuste de barra de calça, pois as roupas hoje vêm da Ásia), de camelôs (de panos de prato e cabos de celular chineses), de vendedores de bolo ou fabricantes de cerveja artesanal, enquanto as nossas terras e riquezas são entregues por nossas elites para a exploração conjunta dos Estados Unidos, China e Europa?


O arcabouço jurídico-institucional que os proponentes qualificam como “sufocante” e “opressor” foi o que permitiu ao Brasil ser um dos países que mais cresceram economicamente no século XX, entre 1930 e 1990. O crescimento pífio dos chamados “voos de galinha” é obra e graça das reformas liberalizantes dos anos 1990. Não bastasse, todas as sociedades altamente industrializadas e líderes em inovação são de países com vasto e rígido ordenamento jurídico sobre as questões econômicas: Alemanha, Suécia, EUA, China etc.

 


A pergunta que não quer calar permanece: aqueles que comemoram a edição da Medida Provisória como um marco da “libertação econômica” do Brasil podem exercer qualquer atividade econômica, sem nenhuma regra ou controle, em Miami? (Fonte: Carta Capital)

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