Cultura de cobrança das empresas pressiona líderes, tem efeito colateral nas equipes e compromete desempenho do negócio, dizem especialistas (Por Jayanne Rodrigues) - Foto: Adobe Stock - 

Durante a pandemia, casos de burnout e de esgotamento mental acenderam um sinal de alerta dentro do ambiente corporativo como nunca visto antes nas últimas décadas. A cultura workaholic foi repensada por muitos trabalhadores. Passado esse período, algo mudou mesmo? A suspeita é de que a balança entre produtividade e saúde mental ainda esteja desequilibrada.

Pelo menos é o que sugere um levantamento feito no Brasil e divulgado no início deste mês, com 387 gestores e outros 387 liderados. A pesquisa foi conduzida por The School of Life, organização focada em inteligência emocional, em parceria com a Robert Half, empresa de consultoria de recursos humanos.

Dos 387 líderes consultados, 44% admitiram ter deixado de produzir ou de se manter engajados em algum momento por estarem emocionalmente abalados. Outro dado do levantamento aponta que 65% dos gestores acreditam que os chefes em cargos superiores não estão preparados para acolher os colaboradores que apresentam queixas relacionadas à saúde mental.

A pesquisa foi feita on-line e ouviu 774 profissionais empregados, de diferentes regiões do Brasil, com 25 anos de idade ou mais e formação superior completa.

Lideranças alegam falta de tempo para cuidar da saúde mental
A jornada de trabalho extensa esbarra em outro problema: a falta de tempo para se dedicar à vida pessoal. De acordo com dados do levantamento, 37% dos gestores entrevistados afirmaram que estão sem tempo para cuidar da própria saúde e do bem-estar.

“Como o líder é um espelho para o time, se as pessoas veem que esse gestor não se cuida, trabalha até 22h todos os dias, não tem tempo para fazer um exercício, uma leitura, não tem um hobby, o líder acaba virando um exemplo para que todo o resto da estrutura faça o mesmo”, alerta Maria Sartori, diretora da Robert Half.

Essa seria uma das raízes para o adoecimento mental no ambiente de trabalho, ressalta Sartori. “Existe um problema na cultura e nos valores das empresas”, adverte.

Sartori estimava que a saúde mental dos líderes e dos liderados iria melhorar significativamente após a pandemia, o que não aconteceu. “Os dados continuam tão negativos quanto antes e em alguns recortes os dados seguem ainda mais negativos”, lamenta a diretora.

Líderes são mais exigidos
“Todo cargo exige uma alta entrega, mas a exigência é ainda maior para a liderança. Por causa da cultura das empresas, existe esse excesso de cobrança, e a equipe acaba sendo um reflexo do comportamento do líder”, avalia Arthur Lima, estudioso de saúde mental e da relação com o mundo do trabalho e CEO da AfroSaúde, startup que cria soluções em saúde com foco na diversidade racial.

Para o especialista, uma parcela das lideranças ainda costuma associar sucesso a produtividade e longas horas de trabalho. Com isso, o modelo de trabalho que provoca exaustão tende a ser normalizado, causando um efeito dominó nas equipes.

"Muitas empresas não criam uma área direcionada à saúde do trabalhador (liderança e liderado), um setor sério que consiga ver o que está atrapalhando as atividades e verificar de fato o que precisa ser modificado."
Arthur Lima, CEO da AfroSaúde e estudioso de saúde mental e trabalho

Diana Gabanyi, CEO da School of Life, concorda com essa análise. “Observamos na pesquisa que houve um pico de preocupação das empresas durante a pandemia, mas isso se manteve estável. O que podemos dizer é que as organizações ainda estão engatinhando nesse sentido.”

Em um cenário ideal, segundo Gabanyi, as companhias deveriam promover um desenvolvimento a longo prazo, em vez de apenas em situações pontuais, por exemplo, quando é identificado um aumento de adoecimento mental ou casos isolados nas corporações.

Escolha de um líder não pode ser só técnica
Outra questão que favorece o adoecimento dos gestores e das equipes é o critério de escolha para a promoção de colaboradores ao cargo de chefia. “Ainda existem pessoas na posição de liderança que são promovidas pela capacidade técnica. Um ótimo técnico não necessariamente é um ótimo líder”, pondera Maria Sartori.

Arthur Lima dá um exemplo: um funcionário que seja muito bom na área de marketing, mas não seja bom em softs skills (habilidades comportamentais) e não entenda de cultura organizacional acaba sendo promovido.

O mercado ainda preza pelo profissional que é cartesiano, segundo Lima. “Esse que é o problema”, diz o especialista ao mencionar que essa liderança pode enfrentar obstáculos por não estar preparada para mudanças no negócio.

Lima também aponta que as organizações muitas vezes não bancam a formação de líderes. “A própria empresa não investe no desenvolvimento de outras habilidades dos líderes. Isso porque, o foco é a entrega de resultado. Ela esquece que a maioria desses resultados é proveniente do trabalho humano”, afirma Lima.

Identificar comportamentos tóxicos
Conforme a pesquisa, um ambiente de trabalho tóxico é o principal fator para pedidos de demissão por parte dos liderados (43%). Por isso, apoio é a habilidade que as pessoas mais sentem falta nas lideranças.

Para reverter a situação do lado dos chefes, especialistas indicam uma mudança de cultura e de mentalidade.

“Precisa existir uma cultura em que os líderes se sintam à vontade para ser quem eles são e para expor suas ideias. Isso permite que a liderança se cuide melhor, dê mais atenção não só a si mesma, como também a sua equipe”, orienta Maria Sartori.

Arthur Lima sugere que uma das soluções podem estar em investimentos para os gestores desenvolverem softs skills, se aprofundarem na cultura organizacional, manejo de tempo e gestão de equipes.

Segundo o especialista, quando um gestor for falar com a alta direção sobre saúde mental da equipe, pode abordar as vantagens financeiras de a empresa investir nisso. “A empresa perde dinheiro quando os próprios líderes não respeitam o limite de horário. As pessoas ficam mais cansadas, produzem menos, as entregas são piores, e isso impacta no financeiro.”

Disponibilizar benefícios, como subsídio para terapia, é importante, mas não é suficiente.

“Não é somente oferecer sessões de terapia. Acredito que isso seja meio caminho andado, mas vivemos em um país onde há ainda estigma sobre saúde mental. É um processo muito longo de sensibilização e de educação das pessoas”, afirma Lima, acrescentando o receio que muitos líderes sentem em expor que estão enfrentando um quadro de desgaste mental. (Fonte: Estadão)

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